Oscar, Tradução Simultânea e o Porta dos Fundos

Tempo de leitura: menos de 1 minuto

Ulisses Wehby de Carvalho

Oscar, Tradução Simultânea e o Porta dos Fundos

Criticar tradução simultânea, em especial logo após a cerimônia de entrega do Oscar, parece ser o segundo “esporte” mais popular no Brasil. É provável que essa seja apenas a percepção de alguém que é intérprete profissional há mais de 20 anos e, vez por outra, se enche com tanta crítica infundada. Antes de dar a impressão de que este texto não passa de mimimi, deixo claro que até os elogios são, às vezes, desprovidos de fundamento, como no relato a seguir.

Intérprete de afegão

oscarEm janeiro passado, a FIFA realizou em Zurique a tradicional cerimônia que premia o melhor jogador do mundo. Fiz a tradução simultânea dessa transmissão ao vivo para um canal de TV. Um dos prêmios da noite, o de fair play, foi concedido à Federação Afegã de Futebol. O discurso de agradecimento do presidente da entidade foi feito em afegão. Eu recebia nos estúdios da ESPN Brasil em São Paulo o áudio da tradução simultânea feita por uma colega que traduzia do afegão para o inglês. Do inglês, eu fazia a simultânea para português. O mesmo aconteceu quando os premiados em outras categorias falavam francês ou alemão. E não é que eu recebi elogio no Twitter por traduzir do afegão? Não estou brincando!

Cf. O que significa “FAIR PLAY”?

Porta dos Fundos

A motivação para escrever este post foi a publicação de um vídeo do Porta dos Fundos intitulado “Tradução Simultânea”, uma brincadeira bem-humorada sobre uma suposta transmissão da festa de entrega do Oscar. Sou fã incondicional da trupe e não há nada nesse vídeo – nem nos outros – que os desabone ou que, a meu ver, mereça críticas. Muito pelo contrário! Assista ao vídeo antes de continuar a leitura:

O texto da brincadeira apenas salienta algumas das peculiaridades da tradução simultânea do Oscar e, em certa medida, a de outros trabalhos também. Costumo dizer em palestras e em cursos que ministro que é absolutamente impossível traduzir simultaneamente a quantidade de piadas, trocadilhos e referências culturais presentes nessas premiações, pelo menos ao nível de fidedignidade e comicidade que o telespectador leigo espera no conforto de sua poltrona. A expectativa é surreal e, consequentemente, a frustração e as reclamações acabam inundando as redes sociais.

Referência: Top 100 – As cem melhores dicas do Tecla SAP de Ulisses Wehby de Carvalho, ©Tecla SAP, 2014.

Dificuldades da tradução simultânea do Oscar

Referências locais

O texto humorístico de premiações, como o da cerimônia de entrega do Oscar, é sempre carregado de referências culturais, históricas, comportamentais, entre outras, quase todas de compreensão restrita ao público americano. No Oscar, como em outros eventos afins, são mencionados programas de TV, episódios da vida cotidiana, nomes de políticos, esportistas e subcelebridades que não são, em geral, do conhecimento dos brasileiros. Além disso, não são raras as referências à cultura judaica, muito presente no dia a dia de certas regiões americanas e no mundo do cinema, algo bem menos comum no Brasil. Prova disso são as palavras em iídiche que fazem parte do inglês falado nos Estados Unidos. Algumas delas já foram tema aqui no Tecla SAP: schmuckchutzpah e tush, entre outras.

Você se lembra do “Casseta & Planeta”? Então, experimente fazer a tradução de três minutos do programa para o inglês, ou para qualquer outro idioma de sua preferência, e depois me diga nos comentários como foi a experiência.

Universo cinematográfico

São inevitáveis as menções aos ícones do cinema, desde nomes de filmes e atores consagrados e reconhecidos pelo público em geral até diretores e profissionais menos conhecidos por quem não vive o dia a dia de Hollywood. Não é todo mundo que tem na ponta da língua o nome do roteirista que ganhou o Oscar em 2004, nem do diretor de fotografia daquele filme maravilhoso. O filme pode até ter sido inesquecível, mas lembrar de todo mundo que aparece nos créditos é feito para poucos cinéfilos.

Fofocas

A única vez em que assisti à cerimônia de entrega do Oscar e entendi a quase totalidade das piadas foi justamente no ano em que morei no Canadá. Ao longo dos três meses que antecederam a noite de gala, pude acompanhar nos programas de televisão, nos jornais e, é claro, nos cinemas tudo o que se falava sobre os filmes, sobre os vestidos, jóias e penteados das estrelas, sobre quem namorava quem, quem havia traído quem etc. Essas fofocas e boatos são um prato cheio para a equipe de redatores e fizeram parte do cardápio na noite de entrega das estatuetas. As piadinhas e alfinetadas dos apresentadores fizeram muito mais sentido para mim naquele ano.

Piadas e trocadilhos

Os trocadilhos, puns ou play on words em inglês, e as piadas, jokes, não são exclusividade das transmissões ao vivo de cerimônias de premiação, como a do Oscar, mas são particularmente frequentes nesses programas por conta da própria natureza do evento. Busca-se o tom bem humorado e cômico a todo instante para, é claro, entreter a plateia no auditório e os telespectadores espalhados pelo mundo. Nem preciso dizer que os trocadilhos e as piadas são uma dor de cabeça enorme até para quem faz tradução escrita – e que tem tempo para refletir, experimentar e, se necessário, buscar outra solução -, imagine para o intérprete de conferência que tem, em média, de dois a três segundos para tomar uma decisão.

Imitações

oscarJá tive que traduzir um orador que, em certo momento, resolveu contar um episódio sobre Richard Nixon. O simpático conferencista começou a imitar o jeito peculiar de falar do ex-presidente americano. O que eu fiz? Traduzi só o relato, é claro. Está certo que eu já fiz a simultânea do show do Marco Luque, mas daí a ser comediante é outra história.

CfSimultânea do show do Marco Luque

Áudio sujo

Algumas vezes, o áudio que vem do exterior chega aos ouvidos do intérprete com interferências. Por exemplo, na volta dos comerciais, o som da vinheta não para assim que os apresentadores começam a falar. O mesmo se aplica quando é chamado o intervalo, ou seja, a música começa antes mesmo de os mestres de cerimônia pararem de falar. As palmas e o som ambiente do auditório em que é realizada a cerimônia de entrega do Oscar também podem prejudicar o trabalho. Sem contar a comunicação dos técnicos da emissora de TV, que, eventualmente, geram ruído no áudio original.

Tem trabalho malfeito também

É claro que há bons e maus profissionais em todas as áreas. Seria muito estranho se o mesmo não acontecesse no universo da simultânea. Há inclusive casos em que amadores são contratados e acabam manchando a imagem da profissão. Escrevi sobre o tema em “Pseudo-Tradução Simultânea? O que é isso?” e em “Tradução Simultânea Profissional x Quebra-galho“. Nesses casos, as “porradas” são merecidas! 😉

Americano ri à toa?

Ao contrário do que muitos acreditam, americano não ri à toa. Se o apresentador do Oscar contou uma piada ou fez um trocadilho que, aparentemente, não teve graça nenhuma, talvez a brincadeira só tenha feito sentido para quem está imerso naquele contexto até o pescoço, o que, geralmente, não se aplica a quem mora no Brasil e não acompanha tudo aquilo que envolve o mundo do cinema – e do Oscar em particular – muito de perto. Nem sempre a culpa é do intérprete!

Speak up! We’re listening…

Espero que a leitura desse texto tenha oferecido elementos para você conhecer um pouco mais sobre o universo da tradução simultânea durante a transmissão do Oscar. Gostou? Ficou faltando algum aspecto importante que não tratei? O que você acha da tradução simultânea dos programas de TV? Envie sua opinião para a gente nos comentários abaixo. Obrigado!

Referência: Top 100 – As cem melhores dicas do Tecla SAP de Ulisses Wehby de Carvalho, ©Tecla SAP, 2014.

0 0 votos
Article Rating
Inscrever-se
Notificar de
guest

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

18 Comentários
mais recentes
mais antigos Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
trackback

[…] Cf. Tradução Simultânea, Oscar e Porta dos Fundos […]

trackback

[…] Cf. Tradução Simultânea, Oscar e Porta dos Fundos […]

trackback

[…] Cf. Oscar, Tradução Simultânea e o Porta dos Fundos […]

trackback

[…] Oscar, Tradução Simultânea e o Porta dos Fundos […]

trackback

[…] Cf. Oscar, Tradução Simultânea e o Porta dos Fundos […]

trackback

[…] Cf. Oscar, Tradução Simultânea e o Porta dos Fundos […]

trackback

[…] Cf. Oscar, Tradução Simultânea e o Porta dos Fundos […]

Ulisses Wehby de Carvalho

Suely, tudo bem?

Há de tudo um pouco. Muitas vezes sabemos qual é o assunto, mas não temos acesso aos materiais que são apresentados na tela. Outras vezes, esse material chega muito em cima da hora e não dá tempo de estudar.

A regra básica é não aceitar o trabalho se você não estiver familiarizado com o tema. Sem receber material com antecedência para estudar e se aparecer um orador que fala rápido demais ou tem sotaque carregado – ou as duas coisas juntas – é melhor conhecer do assunto para não dar zebra.

Abraços

trackback

[…] Oscar, Tradução Simultânea e o Porta dos Fundos […]

Amanda
Amanda
10 anos atrás

Concordo sobre as limitações da tradução simultânea. E é por isso que eu preferiria que colocassem legenda! Porque pelo menos elas não nos atrapalham de ouvir o áudio original e entender as piadas. Sinto muito pra quem não entende inglês, mas não acho justo estragarem as piadas tanto pra quem entenderia em inglês quanto pra quem não entenderia (porque o traduzido perde a graça de qualquer forma).

Ulisses Wehby de Carvalho
10 anos atrás
Responder para  Amanda

Amanda, tudo bem?

Obrigado pelo comentário. Não se trata de “entender” ou “não entender” inglês. Não é possível legendar programas “ao vivo”. Não confunda “legendas” com “closed caption”.

Abraços

Marcos Siewert
Marcos Siewert
9 anos atrás
Responder para  Amanda

Amanda, atualmente muitos canais, (inclusive o TNT, onde a cerimônia é transmitida) possuem a opção de áudio original. Então se você, já possui um nível de listening bom o bastante para entender, faça isso. Caso não, só lhe resta a tradução simultânea.

Danielle Steffen Decruz-sanche
Danielle Steffen Decruz-sanche
8 anos atrás
Responder para  Amanda

Legenda tem que ser feita. Pra ser feita, o tradutor recebe ou a transcrição do áudio do programa (e quem traduz para legendas tem mais restrições do que um tradutor que trabalha com engenharia, como eu) ou por vezes ele tem que assistir e traduzir o que ouve. Esta última opção, pelo que aprendi com tradutores que conheço, demora de 5 a 15x o tempo do áudio original do programa.
Não, não é assim, digamos, batatinha. Você pode sim assistir legendado, mas depois que o programa foi ao ar na língua original. O tempo para os meus colegas fazerem o que descrevi mal e porcamente acima.

Maria Soares
Maria Soares
10 anos atrás

Ulisses excelente os seus comentários. Parabéns por seu trabalho.

Solita Mota
Solita Mota
10 anos atrás

No ponto Ulisses! Realmente algumas traduções simultâneas são ingratas: muito difíceis para o intérprete, incompletas para os ouvintes, e infelizmente quem esta falando não leva em conta que o evento é global. Será que deveriam?

Quanto ao senso de humor de alguns americanos, já fiz uma tradução simultânea em que o palestrante tinha piadinha péssimas, e em certo ponto ele questionou se as suas piadas estavam sendo traduzidas corretamente já que ninguém ria… “Engoli” a minha resposta para o palestrante e continuei, mas confesso que depois disso acrescentei depois de cada piada sem graça: “Isso foi mais uma piadinha” e segui fazendo o meu trabalho.

RUY RODRIGUES DE SOUZA
RUY RODRIGUES DE SOUZA
10 anos atrás

Há muito tempo, li uma crítica que do saudoso Prof. Napoleão Mendes de Almeida ao jornal, que traduziu shuttle como ônibus espacial. Embora ele tivesse razão, a palavra correta “lançadeira” talvez não causasse o mesmo impacto na manchete. E ele teve a semana inteira para pensar no assunto, enquanto que o tradutor tem pouquíssimo tempo, porque a matéria tem que ir pro prelo. Fico imaginando a dificuldade dos tradutores simultâneos que, atualmente, têm segundos para traduzir, já que o português tem quase 1/4 de milhão de vocábulos… Não sei quantos vocábulos tem o inglês, mas pra falar mal o idioma eu ainda tenho que muito que aprender…

Rochester
10 anos atrás

De fato o vídeo foi bem engraçado 🙂

Mas no geral acho uma profissão bem ingrata de tradutor simultaneo. Reparo isso por exemplo na tradução do UFC, onde o “corner” tem 1 minuto pra dar instruções pro lutador e é CERTEZA que ele vai usar algum termo que seja dificil de traduzir. Ou seja, de 60 segundos dá pra aproveitar 15 da tradução, no máximo

Acho que a dificuldade é comparável a de fazer várias somas de cabeça que são ditas para você. A dificuldade de cada operação é bem simples (assim como a trdução de uma palavra) mas chegar no resultado exato é praticamente impossivel (você com certeza vai perder uma soma ou outra, assim como uma piada ou expressão)

-roch

Adilson Santana
Adilson Santana
10 anos atrás

Sempre acompanho os vídeos deles e quando vi esse fiquei logo imaginando o desespero dos tradutores, kkkk. Quem nunca assistiu ao Oscar e ficou perguntando, pelo menos quem nao sabe ingles,por que eles riem de piadas tão sem graça. Gostaria que voce falasse sobre running.